A luta pela industrialização do Brasil enfrentou a elite agromercantil exportadora, aliada do imperialismo, que sempre defendeu a tese da “vocação agrícola” do Brasil, contrária à produção local de bens industriais.
Por José Carlos Ruy do Vermelho
A luta pela industrialização do Brasil é muito antiga. Ela vem desde o final do período colonial quando, em 1785, a rainha D. Maria I, de Portugal, proibiu o funcionamento no Brasil de “fábricas, manufaturas ou teares” e todo tipo de indústria. Mas havia resistência, e um exemplo dela foram os inconfidentes mineiros de 1789 cujo programa falava na instalação de “fábricas de tecidos de algodão e forjas para ferro. Assim como fábricas de pólvora”.
Essa luta antiga aprofundou-se ao longo das décadas. O desenvolvimento de uma economia autônoma foi uma exigência do programa de José Bonifácio, nos anos da independência. Ele defendia um desenvolvimento harmônico que combinasse a agricultura, a indústria e o comércio para melhor atender ao interesse nacional, e não aos das potências externas. “É preciso apoiar as manufaturas, aperfeiçoa-las, mas deve-se ter cuidado em não terem o primeiro grau na atenção do governo: a fabricação é um ente subsidiário da produção; neste ponto de vista é o mais útil agente da produção, pelo preço que dá aos frutos e a venda que procura, é a alma do comércio favorável, diminuiu o volume de seu peso e aumenta proporcionalmente os ganhos”, escreveu.
O anseio por um desenvolvimento nacional centrado nas necessidades do país, de sua economia e dos brasileiros fundamentou a luta pela industrialização durante todo o período imperial, enfrentando o enorme obstáculo representado pela política liberal dominante, que favorecia a agricultura de exportação e sua contrapartida, a importação de bens industriais produzidos fora do país.
A “vocação agrícola” do Brasil
Era uma época em que prevaleceu a tese da “vocação agrícola” do Brasil, durante a qual a ação de industriais como Mauá, no Império, ou Delmiro Gouveia, na República Velha, foi derrotada ao chocar-se contra os interesses da oligarquia agroexportadora e do imperialismo inglês, que aliaram-se para impedir o desenvolvimento de indústrias no Brasil.
Com a proclamação da República, em 1889, cresceu a influência dos partidários do desenvolvimento sendo tomadas algumas medidas favoráveis à produção local, como a lei do similar nacional, por exemplo, que proibia a importação de produtos já fabricados no país (a abrangência dessa lei foi severamente reduzida cerca de um século depois, nos governos neoliberais de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso).
Foi preciso esperar até a revolução de 1930 para que um modelo de desenvolvimento autônomo pudesse firmar-se com mais consistência. Aquele movimento pôs um ponto final na República Velha e em sua política econômica liberal, podendo ser considerado o marco inicial daquilo que, mais tarde, ficou conhecido como nacional desenvolvimentismo.
A partir de então a correlação de forças mudou e o sonho industrialista começou a tomar forma num modelo de desenvolvimento, embora ainda enfrentando a oposição da velha oligarquia agromercantil, que foi fragilizada em 1930 mas não eliminada. O poder político passou a ter novos sócios e a orientação econômica adotada contemplou os interesses dos industriais sem desconsiderar as demandas do latifúndio e do grande capital comercial.
Intervenção do Estado pela industrialização
Mesmo assim a industrialização se aprofundou. Sob o governo de Vargas foi marcante a intervenção estatal em favor da industrialização. Foram criadas também criou condições para a incorporação dos trabalhadores à vida política ao adotar uma legislação trabalhista (que incorporou antigas reivindicações operárias) e ao transformar os sindicatos em verdadeiros órgãos do Ministério do Trabalho agindo no movimento operário (subordinando a atividade dos trabalhadores e orientando-as dentro dos estritos limites permitidos pelo modelo de desenvolvimento adotado).
A influência da orientação industrialista cresceu como nunca, incorporando-se desde então, de forma duradoura, à política de governo. E fomentando um debate intenso que opôs industrialistas e agraristas ao longo daqueles anos, expondo um conflito entre os dois modelos que – com a persistência de importante parcela do poder dos liberais e agraristas na sociedade e mesmo no governo - poderia eclodir assim que houvesse condições.
A disputa entre dois modelos cresceu desde o final do Estado Novo, em 1945, demarcando os campos que se enfrentariam no cenário político brasileiro nas décadas seguintes: o nacional-desenvolvimentista, liderado por Getúlio Vargas, e o campo pró-americano e conservador (hoje chamado de neoliberal) liderado pela União Democrática Nacional e pelos antepassados políticos do PFL (hoje DEM) e do PSDB.
Nacional desenvolvimentismo
A deposição de Vargas, em 1945, e a eleição do marechal Eurico Gaspar Dutra representaram um golpe que interrompeu, temporariamente, a busca de um desenvolvimento autônomo. No segundo governo de Getúlio Vargas, a partir de 1951, o nacional-desenvolvimentismo foi retomado e teve uma formulação mais clara. Ele previa o uso dos instrumentos do Estado para a promoção da infraestrutura necessária ao desenvolvimento de uma indústria brasileira de bens de capital vista como a base para a industrialização autônoma do país.
“
A minha atuação obstinada” – Vargas assegurou durante a campanha eleitoral – “foi transformar em nação industrial uma nação paralisada pela monocultura extensiva e pela exploração primária das matérias-primas". Vargas voltou à Presidência com a idéia de retomar o impulso perdido em 1945, mas em condições internas e externas difíceis. As reservas externas acumuladas durante a Segunda Grande Guerra haviam sido consumidas em importações de bens de consumo para a classe dominante; a reação interna fora fortalecida sob Dutra, que manietou os sindicatos, perseguiu os comunistas e impediu, diligentemente, o reaparecimento de qualquer forma de organização popular (uma das medidas democratizantes de Vargas, que impulsionou a participação dos trabalhadores na luta pelo desenvolvimento, foi o fim da exigência de atestados ideológicos nas eleições sindicais); externamente, o imperialismo, refeito do impacto da guerra, se fortalecia e a guerra fria estava no auge.
Oposição neoliberal
Naqueles anos o choque entre o imperialismo e o nacional-desenvolvimentismo se aprofundou. Embora moderado, o nacionalismo de Vargas assustava a oligarquia e o capital estrangeiro. A “oposição conservadora”, diz Maria Victória M. Benevides, “liderada pela UDN, alimentava suas criticas à política econômica do governo pela aversão às propostas de política social e salarial anunciadas por Getúlio (...) e ao avanço do nacionalismo, em termos de intervenção estatal e controle do capital estrangeiro. Estava em jogo, portanto, a defesa de um modelo ‘neoliberal’, no qual predominavam definições conservadoras sobre a questão operária e privatistas sobre a questão da fórmula para o desenvolvimento”.
Vargas criou alguns organismos que tiveram enorme influência na industrialização do país, cujo avanço foi então acelerado. Lançou as bases do planejamento econômico; fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952; criou a primeira comissão governamental para fomentar a indústria automobilística (em 1952); criou a Petrobras (em 1953) etc.
O clímax da reação conservadora contra Vargas foi a crise de agosto de 1954 e o suicídio do presidente no dia 24 daquele mês. Mas o governo dos golpistas – dirigido com expoentes do entreguismo, como Eugenio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões e Otávio Marcondes Ferraz, aliados ao capital estrangeiro, do latifúndio e do grande capital financeiro brasileiro –, não teve forças para impor integralmente seu programa conservador e neoliberal. Não conseguiu fazer sua reforma cambial nem acabar com o monopólio estatal do petróleo. Mas revogou as restrições às remessas de lucros ao exterior pelas multinacionais.
Modelo associado dependente
Eles criaram a condição para uma alteração fundamental no nacional-desenvolvimentismo. Favoreceram a entrada de empresas estrangeiras com a adoção da famosa Instrução 113 que permitiu às empresas estrangeiras importarem equipamentos isentos de tarifas alfandegárias, mas excluindo desse benefício os capitalistas brasileiros.
Foi a porteira aberta para a avassaladora desnacionalização da economia nacional, com a invasão de empresas estrangeiras que passaram a dominar os setores de ponta, particularmente a indústria automobilística. Outra mudança essencial foi a ênfase na produção de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos, deixando em segundo plano a indústria de bens de capital necessária para a autonomia da produção brasileira.
A opção conservadora pela industrialização com base no capital estrangeiro tinha uma razão: ela não levaria à alteração profunda nas relações sociais, fortalecia o vínculo com o imperialismo e a dominação externa, não ameaçava a arcaica estrutura social e era uma opção de financiamento do desenvolvimento que não desviaria capitais da agricultura. A instrução 113 foi assim o certificado de nascimento de um novo modelo de desenvolvimento, o associado dependente, que foi uma espécie de variação conservadora do nacional desenvolvimentismo. Ele foi fortemente impulsionado pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek e aprofundado pelos governos militares após 1964.
As multinacionais e a desnacionalização da economia
O governo de Juscelino Kubitschek reorientou a industrialização, atraindo algumas das mais poderosas multinacionais, que se instalaram ou aprofundaram as atividades no Brasil, beneficiadas pela Instrução 113. Entre elas, a Ford, a General Motors, a Volkswagen, a Krupp, a Mannesman etc que, rapidamente, se transformaram no pólo dinâmico da economia, estimulando todas as demais atividades produtivas. Estavam lançadas assim as bases do enorme desenvolvimento das décadas seguintes, baseado nas empresas estatais, empresas privadas nacionais e empresas estrangeiras, e no consumo de bens duráveis, como automóveis e eletrodomésticos.
Era um projeto de desenvolvimento aceitável para as classes dominantes, principalmente as elites agrárias e o capital financeiro, solidamente representados no Congresso Nacional com a vantagem, para elas, de manter o movimento operário sob controle. O latifúndio continuava intocado, os industriais conseguiram bons negócios com as multinacionais e os trabalhadores pareciam satisfeitos com as possibilidades de novos empregos abertos pelas novas indústrias. Esse modelo importou os fabricantes para substituir a importação dos produtos.
Para a classe dominante brasileira foi um verdadeiro achado; a modernização conservadora unificou seus vários setores, deu-lhes um arremedo de projeto nacional, ligou-os aos interesses do imperialismo e, ao mesmo tempo, promoveu a modernização sem alterar a arcaica estrutura social.
A marcha triunfante do modelo associado dependente enfrentou ainda no governo de João Goulart (1961/4) uma breve e frágil tentativa de restauração do nacional-desenvolvimentismo, marcada por uma pauta extensa de reformas vistas como necessárias para a modernização do país. Entre elas destacava-se a reforma agrária, a renegociação da dívida externa, o controle da remessa de lucros das empresas estrangeiras e a regulamentação do ingresso do capital estrangeiro no país, as reformas urbana, administrativa, bancária, da previdência social, da educação, a regulamentação do direito de greve, a nacionalização das concessionárias de serviços públicos etc.
Ditadura militar
Mas Goulart foi deposto, em 1º de abril de 1964, e o modelo associado dependente prevaleceu nas décadas seguintes, sob o regime dos generais. O governo do primeiro general presidente, Castelo Branco, implantou uma política econômica rigidamente liberal expressa no Plano de Ação Econômica Governamental (PAEG) gerido pela dupla Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, herdeiros de Eugênio Gudin e da tradição livre-cambista. Seu fundamento era o corte dos gastos públicos, aumento de impostos, restrição ao crédito e arrocho salarial. Adotaram também a Instrução 289, em 1965, que favorecia ainda mais a entrada das empresas estrangeiras, financiadas agora com mecanismos cambiais garantidos pelo Tesouro Nacional. O PAEG facilitou, ainda, a compra de empresas brasileiras por multinacionais, aumentando a desnacionalização e à desorganização da economia nacional.
Em 1971 o governo militar promoveu uma discreta reorientação com o I PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) que, sem hostilizar as multinacionais, propunha-se a colocar o empresário brasileiro em situação de igualdade com as empresas estrangeiras em algumas áreas, reservava alguns setores estratégicos da economia aos empresários brasileiros e procurava encaminhar as multinacionais para a criação e expansão das indústrias de base.
Mais tarde, em 1974, o II PND (no governo Geisel), reiterou a promessa de fortalecer a indústria nacional, prevendo o equilíbrio entre empresas estatais, privadas nacionais e estrangeiras, e propondo o fortalecimento da produção de bens de capital e insumos duráveis. Isto é, propunha-se a corrigir a debilidade fundamental do desenvolvimento industrial dando-lhe autonomia e maturidade ao tornar nossa economia independente da necessidade de importar máquinas e equipamentos para sua atualização tecnológica.
A crise da dívida externa
O calcanhar de Aquiles do II PND foi o financiamento com empréstimos externos, principalmente na época em que o “milagre econômico” de 1968 a 1973 dava sinais de esgotamento. A crise econômica mundial, que estouraria nos anos 1980, germinava lentamente fazendo com que aquele esforço de lançar a economia numa nova fase de desenvolvimento se traduzisse no pesadelo da dívida externa crescente. Vinculada a juros internacionais flutuantes, que começaram a crescer sem controle desde a chamada “crise do petróleo” de 1973-74, a dívida externa brasileira pulou rapidamente para o patamar de 100 bilhões de dólares.
A crise eclodiu com força nos anos 1980, atingindo frontalmente a indústria brasileira e colocando o país, no final da ditadura militar, numa encruzilhada histórica que atravessou a década de 1980 e opôs a alternativa entre um modelo de desenvolvimento para fortalecer a economia brasileira e atender às necessidades da economia e do povo, ou a volta do velho modelo liberal (agora neoliberal), da subordinação do país ao imperialismo, do enfraquecimento da produção nacional e sua esteira de desemprego e empobrecimento dos brasileiros.
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