Resolvi reproduzir aqui um texto interessante do Jornalista Luis Carlos Azenha publicado no Viomundo sobre as besteiras tagareladas pelos nossos narradores e comentaristas durante a cobertura da Copa do Mundo da África do Sul
E depois ainda dizem que Dunga é o “atrasado”
por Luiz Carlos Azenha
“O negro é cientificamente mais forte”, disse um ilustre comentarista, em tom de elogio, a respeito da seleção da Costa do Marfim. Um narrador chegou a sugerir que sobra força física mas falta inteligência aos times “africanos”, razão que estaria na base do suposto fracasso das seleções do continente em avançar para a segunda fase. Bem-vindos à cobertura da Copa do Mundo da África do Sul.
Curiosamente, nos dois casos, provavelmente sem saber os “profissionais” reproduziram teorias cujo objetivo era fornecer justificativa intelectual para a ocupação física da África pelo colonialismo europeu.
Resumindo grosseiramente, essas teorias pregavam a superioridade natural dos europeus brancos sobre os nativos, que seriam “fortes”, mas “preguiçosos”, “lascivos” e “intelectualmente inferiores”. Essas constatações serviam, naturalmente, para justificar as ações europeias na África: o controle das terras, dos recursos naturais e a utilização dos negros “fortes” como mão-de-obra escrava ou semi-escrava. Justificavam, inclusive, o controle das rebeliões da mão-de-obra com o uso de métodos violentos (no Congo, os agentes do rei belga Leopoldo cortavam as mãos dos trabalhadores que não cumpriam as cotas de extração de borracha natural).
Os negros, afinal, não eram apenas atrasados. Eram bárbaros, representavam com sua “lascividade” uma ameaça física às mulheres brancas, símbolo máximo da “pureza” da civilização europeia, especialmente na era vitoriana. Vem daí o mito do superpoder sexual dos homens negros (assim como, na Segunda Guerra Mundial, a propaganda americana espalhou o mito de que os orientais são sexualmente pouco dotados em termos de centimetragem).
Para justificar a barbárie, surgiram pseudociências como a frenologia, que pretendia comprovar que as características de um ser humano podiam ser definidas pelas formas da cabeça. Os “cientistas” passaram a se dedicar, por exemplo, a medir o tamanho da cabeça de brancos e negros, encontrando nestes desenhos cerebrais que eram “prova definitiva” de sua inferioridade. Quando os alemães ocuparam as terras do povo herero, no que hoje é a Namíbia, por exemplo, provocaram uma rebelião que foi esmagada com uma guerra de extermínio e a implantação de campos de concentração para a população civil. Destes campos sairam dezenas de cabeças de prisioneiros mortos, remetidas para a Alemanha para “estudos científicos”.
Assim como os campos de concentração foram primeiro implantados na África (pelos britânicos, na guerra contra os bôer, pelo controle do que hoje é a África do Sul), as teorias que mais tarde seriam aplicadas por Josef Mengele em Auschwitz foram “testadas” pelo pai da eugenia, o médico e antropólogo alemão Eugen Fischer, na África.
Dizer, hoje em dia, que todos os africanos são fortes a partir do exemplo de 11 jogadores da seleção da Costa do Marfim é o mesmo que presumir que todos os estadunidenses são gigantes a partir da observação de um jogo de basquete entre os Lakers e os Celtics. Embora os brasileiros dominem há anos as competições de vôlei masculino, não há nenhuma razão para acreditar que sejamos “naturalmente dotados” para a prática do vôlei.
O que os nossos comentaristas, narradores e “jornalistas” deveriam se perguntar é razoavelmente óbvio: por que a seleção da Costa do Marfim é musculosa assim? Será que os africanos nascem com aqueles biceps e triceps “naturalmente” desenvolvidos?
Talvez eles encontrassem explicação no fato de que os jovens jogadores de futebol de alguns países da África — Camarões, Gana e Costa do Marfim, por exemplo — mal fazem estágio em equipes locais antes de ir para a Europa. Muitos destes jogadores são recrutados na pré-adolescência por caça-talentos que servem a escolinhas de formação de jogadores. No caso de Costa do Marfim, por exemplo, a escolinha mais importante do país vende um jogador jovem (18 a 21 anos de idade) para times de segunda ou terceira divisão da Europa por cerca de 600 mil dólares. Como o contato físico no futebol europeu é tido como uma característica do jogo, é apenas natural que tantos os preparadores quanto os próprios atletas trabalhem para “bombar” o físico. Não é diferente com jogadores brasileiros (vide a transformação física do Ronaldo, por exemplo). Muitas vezes um bom jogador brasileiro, como o Neymar, é tido como “muito franzino” para enfrentar o rigor do futebol europeu. E tome musculação, para não falar em hormônios e outros métodos clandestinos.
Pessoalmente acredito que essa é uma tendência suicida para o futebol arte: a produção em massa, em todo o mundo, de super-atletas destinados a suprir as necessidades de mão-de-obra das ligas europeias, jovens precocemente “bombados” e com pouco domínio dos fundamentos básicos do futebol (notem a qualidade bisonha dos chutes a gol na Copa do Mundo da África do Sul). Mas isso é outro assunto.
O que espanta, mesmo, é ver gente com alto poder de influência sobre o grande público repetir, em pleno século 21, preconceitos que nasceram de teorias racistas do século 19. São, afinal, apenas dois séculos de atraso.

SAUDAÇÕES PALESTRINAS
"A vida é uma carroça!"
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20 de jun. de 2010
6 de abr. de 2010
Azenha e os países do SUL
5 de abril de 2010 às 18:37 no Viomundo.com.br
A Globo, a Record e os chineses. Em Cabo Verde
por Luiz Carlos Azenha
Escrevo de Mindelo, a agradável cidade da ilha de São Vicente, uma das que formam Cabo Verde. Aproveito as férias na TV Record para acompanhar uma das equipes da revista Nova África, que segue daqui para São Tomé e Príncipe.
(Se você perdeu este capítulo, sou diretor editorial do programa, função que desempenho na condição de assalariado da Baboon Filmes — produtora paulista dos empresários Henry Ajl e Markus Bruno que ganhou uma concorrência pública competindo com empresas de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brasília).
Estivemos em regiões remotas do país, que fica no meio do oceano Atlântico, entre a costa do Brasil e a África. Aqui teve início o processo de miscigenação entre europeus e africanos que resultou no tipo humano que é comum a Cabo Verde e ao Nordeste brasileiro. Mas isso fica para ser contado no programa.
Achei curioso que na lanhouse que uso neste momento a TV está ligada… na TV Record. Pelo que ouço (não consigo ver, só ouvir a TV), trata-se de um programa de João Cleber, em que ele apresenta pegadinhas e dá um prêmio de 500 euros aos telespectadores. Mais cedo, acompanhei a disputa entre os usuários da lanhouse pelo controle remoto: alguns queriam ver futebol europeu e outros a novela Paraíso Tropical, da Globo.
Em Cabo Verde a população fala crioulo (95% português, 5% palavras de idiomas africanos). O português como falamos no Brasil é coisa dos letrados.
A chegada do Brasil a Cabo Verde é razoavelmente recente: se aprofundou com a disseminação das antenas parabólicas e com o acesso à energia elétrica (grande parte dos moradores do país ainda não tem acesso à água, luz ou rede de saneamento básico).
Mais cedo, em um supermercado, o sistema de som reproduzia uma rádio local que tocou Roberto Carlos e, em seguida, Leandro e Leonardo. Mais cedo, em um café, ouvi uma guarânia cantada por uma dupla brasileira que não consegui identificar.
Na porta do supermercado, um grupo de imigrantes asiáticos, com os quais não consegui me comunicar, se agachou para fazer uma refeição rápida com o que acabara de comprar.
O comércio, quase todo, é dominado por chineses. Eles chegam com suas mercadorias baratas e, apesar do ressentimento de alguns, são saudados pelos caboverdianos pobres, que agora podem calçar toda a família e comprar os uniformes escolares.
Meu ponto é que aqui, em Cabo Verde, vejo imagens que já vi em outros países da África: nos espaços deixados vagos pelos Estados Unidos e a União Europeia, vão se construindo alianças formais e informais entre os “pobres”. Aqui, só dá Brasil e China.
Três caboverdianos estão neste momento bem diante da TV, hiptonizados pelo conteúdo inventado aí no Brasil. Isso não é necessariamente bom para eles. Pode ser comercial e culturamente interessante para nós.
Curiosamente, no dia anterior fiz uma viagem com um jornalista americano, de uma influente editora de Nova York. Como alguns de vocês sabem, vivi quase 20 anos nos Estados Unidos. Mas foi a primeira vez que constatei in loco o “deslocamento” cultural de um americano: um discurso repleto de clichês e uma imensa dificuldade de compreensão das mudanças à nossa volta.
Ele queria ver “a América” em Cabo Verde, talvez para se sentir reconhecido. Viu os chineses. E a TV brasileira.
A Globo, a Record e os chineses. Em Cabo Verde
por Luiz Carlos Azenha
Escrevo de Mindelo, a agradável cidade da ilha de São Vicente, uma das que formam Cabo Verde. Aproveito as férias na TV Record para acompanhar uma das equipes da revista Nova África, que segue daqui para São Tomé e Príncipe.
(Se você perdeu este capítulo, sou diretor editorial do programa, função que desempenho na condição de assalariado da Baboon Filmes — produtora paulista dos empresários Henry Ajl e Markus Bruno que ganhou uma concorrência pública competindo com empresas de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brasília).
Estivemos em regiões remotas do país, que fica no meio do oceano Atlântico, entre a costa do Brasil e a África. Aqui teve início o processo de miscigenação entre europeus e africanos que resultou no tipo humano que é comum a Cabo Verde e ao Nordeste brasileiro. Mas isso fica para ser contado no programa.
Achei curioso que na lanhouse que uso neste momento a TV está ligada… na TV Record. Pelo que ouço (não consigo ver, só ouvir a TV), trata-se de um programa de João Cleber, em que ele apresenta pegadinhas e dá um prêmio de 500 euros aos telespectadores. Mais cedo, acompanhei a disputa entre os usuários da lanhouse pelo controle remoto: alguns queriam ver futebol europeu e outros a novela Paraíso Tropical, da Globo.
Em Cabo Verde a população fala crioulo (95% português, 5% palavras de idiomas africanos). O português como falamos no Brasil é coisa dos letrados.
A chegada do Brasil a Cabo Verde é razoavelmente recente: se aprofundou com a disseminação das antenas parabólicas e com o acesso à energia elétrica (grande parte dos moradores do país ainda não tem acesso à água, luz ou rede de saneamento básico).
Mais cedo, em um supermercado, o sistema de som reproduzia uma rádio local que tocou Roberto Carlos e, em seguida, Leandro e Leonardo. Mais cedo, em um café, ouvi uma guarânia cantada por uma dupla brasileira que não consegui identificar.
Na porta do supermercado, um grupo de imigrantes asiáticos, com os quais não consegui me comunicar, se agachou para fazer uma refeição rápida com o que acabara de comprar.
O comércio, quase todo, é dominado por chineses. Eles chegam com suas mercadorias baratas e, apesar do ressentimento de alguns, são saudados pelos caboverdianos pobres, que agora podem calçar toda a família e comprar os uniformes escolares.
Meu ponto é que aqui, em Cabo Verde, vejo imagens que já vi em outros países da África: nos espaços deixados vagos pelos Estados Unidos e a União Europeia, vão se construindo alianças formais e informais entre os “pobres”. Aqui, só dá Brasil e China.
Três caboverdianos estão neste momento bem diante da TV, hiptonizados pelo conteúdo inventado aí no Brasil. Isso não é necessariamente bom para eles. Pode ser comercial e culturamente interessante para nós.
Curiosamente, no dia anterior fiz uma viagem com um jornalista americano, de uma influente editora de Nova York. Como alguns de vocês sabem, vivi quase 20 anos nos Estados Unidos. Mas foi a primeira vez que constatei in loco o “deslocamento” cultural de um americano: um discurso repleto de clichês e uma imensa dificuldade de compreensão das mudanças à nossa volta.
Ele queria ver “a América” em Cabo Verde, talvez para se sentir reconhecido. Viu os chineses. E a TV brasileira.
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